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A crise da habitação e o catálogo de soluções

Foto do escritor: Luis MorgadoLuis Morgado

Atualizado: 21 de mar.

Standardized Housing catalogue Canada
Catálogo de soluções em British Columbia - Standardized housing designs - 2024

A crise da habitação é um dos temas marcantes do nosso tempo. Não é um problema novo, mas agravou-se nos últimos anos com o inacreditável aumento dos preços, especialmente nas grandes cidades, provocado pela reduzida oferta, pelo aumento da procura e pela especulação. Entre nós o fenómeno é agravado pelo desinvestimento público em habitação, pela disfuncionalidade histórica do mercado de arrendamento, pela massificação do turismo nas cidades e pela explosão do negócio do alojamento local.

Das várias discussões a que assisti, uma das mais interessantes foi protagonizada num podcast chamado “Partida de Xadrez”, no qual Gonçalo Moura Martins (Presidente da Comissão Executiva da Mota-Engil) e António Ramalho (Chairman da Touro Capital Partners, ex-presidente do Novo Banco), a propósito da estratégia do Governo para este sector, reflectiram sobre a crise da habitação . Ambos apresentaram aquele que é um problema complexo, de uma forma simples e estruturada, identificando a questão como tendo duas grandes componentes, por um lado a crise do acesso e por outro, a crise da oferta. Deixando de parte o problema dos excluídos, a dificuldade do acesso à habitação por parte da classe média tem a ver com o desfasamento entre o salário médio e o custo do m2 de área. Uma casa de 100m2, com um custo de 2000 Euros/m2, exigiria o pagamento de cerca de 800 Euros por mês, por um empréstimo. Para um salário médio de 1600 Euros, esta é uma situação manifestamente problemática. Não se perspectivando um aumento generalizado dos salários de modo a resolver este enguiço, uma das formas mais eficazes de facilitar o acesso à habitação, para além dos apoios do Estado, é através do aumento da oferta.

Resolver o problema não deve consistir apenas em disponibilizar um maior número de unidades de habitação no mercado, obriga também a limitar o custo a um valor que possa ser adequado à capacidade de quem pretende comprar. Na “Partida de Xadrez” identificam-se os componentes do custo da construção sobre os quais devem incidir as medidas tendentes a concretizar o objectivo enunciado: o terreno, os impostos e a construção.

Relativamente aos terrenos, já muito se falou entre nós e algumas medidas já foram tomadas e depois retomadas. Sabe-se que, na falta de terrenos para construir, se deve investir na reabilitação. Sabe-se que o Estado tem de mobilizar o património que tem. Também é mais ou menos pacífico que alguns terrenos rústicos poderão ser convertidos em urbanos e nas cidades poderia pensar-se no bónus edificativo, ou seja, apostar na densidade e na construção em altura. Estas medidas, no entanto, chocam com muitos obstáculos e burocracias que as tornam pouco eficazes por si só.

Quanto à redução dos impostos, esta foi já entendida como importante e está já contemplada na lei no caso das operações de reabilitação urbana. Uma generalização do IVA à taxa reduzida para a construção de habitação, por um prazo definido seria um incentivo para se construir mais e mais rápido. Esta ideia foi primeiro lançada como boa, mas num momento posterior não gerou consenso entre os decisores políticos. No entanto, também esta medida por si só dificilmente resolveria um dos problemas fundamentais: o tempo que é necessário para construir um edifício de habitação, desde que o promotor toma a decisão até que o habitante entra no seu apartamento.

O custo da construção é o terceiro componente. Reduzi-lo obriga a um esforço de inovação. Aligeirar o peso da mão de obra, normalizar e industrializar os processos, reduzir a variabilidade das soluções, produzir fora do estaleiro, são objectivos que apesar de terem sido equacionados já há mais de cem anos, em especial pelos arquitectos modernistas e com provas dadas em muitas operações de habitação social em muitos países, tardam a generalizar-se para a construção corrente que padece do vício de se encarar cada edifício como um protótipo. Parece então ser evidente que a redução do peso da mão de obra (uma das grandes responsáveis pelos elevados custos), conjugada com uma racionalização do tempo de cada intervenção teria uma implicação imediata no custo final da habitação.

Reduzir o custo implica então melhorar a eficácia geral de todos os envolvidos no processo, seja na relação entre quem licencia e quem projecta, seja na relação entre quem projecta e quem constrói. No primeiro caso, foi já identificada a necessidade de simplificar os procedimentos, no sentido de caminhar para uma responsabilização dos intervenientes (SIMPLEX administrativo) e tentar num futuro próximo simplificar também o Regulamento da construção, eliminando factores de subjectividade, contradição e redundância.

No que diz respeito ao Estado, como promotor, também a filosofia dos contratos entre a administração pública e os construtores poderia ser completamente revista. Em vez do princípio da desconfiança e do preço mínimo, porque não passar a considerar precisamente o contrário? Porque não envolver o empreiteiro nas fases iniciais dos processos para que os projectos possam integrar desde cedo a experiência dos construtores em termos de eficácia, inovação e adequação do projecto aos meios técnicos disponíveis? Porque não fazer como se faz nos países anglo-saxónicos com o “Early Contract Involvement”?

Catálogo de Design Habitacional da CMHC com casas coloridas ao fundo. Botão "How to use the catalogue" visível. Layout moderno.
Housing Design Catalogue - Canada Mortgage and Housing Corporation (CMHC)

Das muitas soluções de eficácia de que se fala, uma que parece muito curiosa e que também não é novidade, tendo até já sido muito utilizada em operações específicas é a ideia de “projecto tipo”. Na “partida de xadrez” citava-se um arquitecto que dizia que todos os projectos acabam por ser um protótipo. Numa perspectiva de eficiência e perseguindo o objectivo de construir rápido e em quantidade, a ideia de elaborar projectos tipo, ou meta-projectos, ou mesmo catálogos de soluções prontas a utilizar, não parece ser de todo descabida, por mais que isso possa parecer estranho à ideia que têm os arquitectos acerca da especificidade de cada lugar, de cada cliente e de cada projecto. Acredito até que os arquitectos serão os primeiros a reconhecer que o que caracteriza o contexto dos projectos da habitação que falta construir é, em grande parte a necessidade de responder com eficácia e rapidez, garantindo como é evidente a qualidade do produto final.

Nesse sentido pareceu-me relevante analisar uma das muitas medidas adoptadas no Canadá para enfrentar a crise da habitação e que consiste na adopção de um catálogo de soluções para colocar ao dispor de construtores e promotores, acreditando-se que possa ser uma ferramenta útil para aligeirar um processo que é, pela sua natureza, muito complexo.

A exemplo do que o Governo de British Columbia já tinha feito, o Governo Federal do Canadá lançou em 12 de Abril de 2024 um plano chamado “Solving the housing crisis: Canada’s Housing Plan” para responder à crise de acesso à habitação. O plano tem três vectores:

1 - Construir mais casas;

2 – Facilitar a compra e arrendamento;

3 – Ajudar o acesso à habitação de excluídos, sem-abrigo, jovens e idosos.


Capa de brochura "67 Homes for Canadians". Mostra uma casa moderna, plantas de construção e texto sobre planos de casas premiados no Canadá.
67 Homes for Canadians - Central mortgage and Housing Corporation (1947)

Uma das medidas lançadas pelo Governo com o objectivo de “construir mais casas”, consistiu no lançamento da fase inicial de um catálogo de soluções de habitação, uma ideia inspirada nos catálogos desenvolvidos entre os anos 40 e 70. Muitos dos modelos presentes nesses catálogos do passado acabaram por ter uma grande difusão e impacte no território canadiano. A tradição de recorrer a catálogos é antiga na América do norte, oferecendo uma alternativa, por vezes vantajosa, em relação ao processo tradicional que exige um processo iterativo, com revisões sucessivas no sentido de compatibilizar aspectos técnicos e de design e de eliminar conflitos entre exigências de sinal contrário.

Text titled "Canadian Small House Competition" addresses a middle-aged man's need for a suitable house for his family. The problem and requirements are detailed.
Mr. Canadá, o cliente imaginário - Canadian Small House Competition 1947

Num processo que se foi consolidado ao longo do século XX a Central Mortgage and Housing Corporation lançou concursos para arquitectos que deveriam contribuir para o catálogo, propondo-se a certa altura um cliente imaginário:

“The Client, Mr. Canada, an average Canadian in his middle 30's, has needed a house since the end of the war. He, his wife, his daughter aged live, and a son of two years, are now living in overcrowded accommodation. (…)”.

Era esta a ideia fundamental do catálogo oferecer projectos tipo para as famílias tipo do pós-guerra do Canadá.

Blueprint of house design 288 features front, side, back views, floor plan with patio, living spaces. Text details design by F.W. Sunter.
Canadian Small House Competition - Projecto nº. 288

Em Julho de 2024, o Governo Federal lançou um concurso (Request for Proposals RFP) para o desenvolvimento de conceitos para integrar o Housing Design Catalogue. Foram seleccionadas as propostas de MGA | Michael Green Architecture para a região de British Columbia e LGA Architectural Partners Ltd., que trabalharam com 5 equipas de peritos, incluindo Dub Architects, 5468796 Architecture, KANVA, Abbott Brown Architects, e Taylor Architecture Group.

Em 2025 apresentaram-se 50 soluções de diversas tipologias (casas anexas, moradias unifamiliares, casas em banda, habitações colectivas de 4 e 6 unidades). Apesar de um dos objectivos da iniciativa ser densificar o território urbano do Canadá, permitindo aproveitar espaços urbanos não utilizados, as tipologias adequam-se ao contexto norte-americano de uma urbanização de baixa densidade. A realidade das grandes cidades Canadianas integra já políticas de alta densidade, com a adopção de solução de edifícios residenciais de grande altura (high rise), as chamadas “condo towers” que atingem até 70 pisos.


Catálogo de designs de casas com imagens de residências. Texto informa regiões e medidas. Opções de filtragem e botão de reset visíveis.
O Catálogo inclui uma variedade de projectos para diferentes tipologias. Housing Design Catalogue - Canada Mortgage and Housing Corporation (CMHC).

O Catálogo é organizado com soluções adequadas à diversidade de cada província canadiana (British Columbia, Alberta, Saskatchewan and Manitoba, Ontario, Quebec, Atlantic provinces and Northern territories), singularizando-se em termos de métodos de construção, materiais, clima e regulamentos locais (embora o National Building Code of Canada - Part 9, seja a matriz comum). Os escritórios de arquitectura escolhidos para conceber as soluções de cada região, foram desafiados a responder às exigências de adaptabilidade aos diferentes usos, promovendo a eficiência higrotérmica, a racionalidade e eficácia construtiva, a normalização da construção e o uso de processos e materiais locais. O desenvolvimento dos projectos teve ainda em conta as importantes exigências de acessibilidade e flexibilidade.

Seguindo a tradição do catálogo, espera-se que esta iniciativa, permita reduzir os custos, o tempo de construção e a incerteza associada a soluções não testadas. Ter uma solução pré-aprovada permite acelerar todo o processo beneficiando os construtores e os habitantes. As soluções são, no entanto, abertas a alterações que permitam adaptações a exigências específicas ou ajustes para inserção em contextos singulares. Para além dos aspectos de desenho espacial, e da adopção de processos de construção e uso de elementos pré-fabricados, incorpora-se também a documentação relativa estimativas de custo.

Para já foi apenas lançada a primeira parte das soluções de habitação com plantas, detalhes principais e renderings. Estes elementos podem funcionar como ponto de partida, mas em breve será adicionado um dossier com desenhos de arquitectura e especialidades, com relatórios de comportamento energético, custos de construção e plantas alternativas para diferentes exigências de acessibilidade.

O catálogo, em vez do livro dos velhos tempos, é um website, onde o utilizador pode seleccionar o tipo de habitação, a região (província) e a dimensão relativa (pequena ou média). Para já fica-se com um conjunto de opções projectadas por bons arquitectos, ao nível do projecto base.


Fluxo de design padronizado. Processo típico (vermelho) vs. catálogo (azul). Ícones representam fases de projeto até construção.
O processo do Catálogo de Soluções comparado com o processo tradicional.

Entre nós, historicamente, também os projectos tipo foram adotados, embora de modo diferente. Por um lado, as várias operações de bairros sociais de iniciativa Pública, do Estado novo à Democracia, sempre apostaram em soluções de racionalização e eficácia construtiva. Dois dos exemplos mais interessantes serão o do bairro de Alvalade em Lisboa de Faria da Costa e o do projecto da Malagueira, em Évora, de Siza Vieira. Mas, surpreendentemente, o fenómeno do “catálogo” acabou por ser também muito evidente fora do contexto do Estado, veja-se a abordagem de Raul Lino, que através do seu livro “casas portuguesas” acabou por, voluntária ou involuntariamente, inventar um catálogo de projectos, também eles adaptadas a diferentes regiões do país.

 

Capa de livro "Casas Portuguesas" de Raúl Lino. Ilustração de casa amarela com árvores ao fundo. Texto: "ALGUNS APONTAMENTOS...".
Raul Lino - Casas Portuguesas, 4ª ed. 1944

Quanto à racionalização da construção, para além das empresas de construções pré-fabricadas, que continuam a ser ainda um nicho de mercado, alguns arquitectos portugueses recentes, por convicção, adoptaram uma postura de design tendente a propor soluções de habitação cujas características de repetição, normalização e prefabricação, propunham uma imagem de racionalidade clássica que resultava sem dúvida em processos de construção mais eficazes. Um dos casos mais notáveis terá sido o do atelier Promontório.

Maquete Bloco de Carnide com várias janelas em fundo preto. Estrutura clara, linhas geométricas, atmosfera minimalista e elegante. Por Arquitectos promontório.
Bloco de Carnide 1999-2003 - Promontório

Mais recentemente, talvez o estudo mais interessante, no domínio do lançamento de um projecto tipo, seja o Estudo de Conceito de Maio 2019 inserido no Programa de Renda Acessível, concebido pela Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU), coordenado por Susana Rato e Joana Couto. O estudo de conceito visava funcionar como um instrumento de apoio metodológico aos processos de projecto e construção em grande escala, de edifícios de habitação, de forma “célere, inteligente e economicamente sustentável”.

O estudo ter-se-á centrado em três pontos essenciais: racionalidade, funcionalidade, e simplicidade, tendo-se privilegiado a qualidade de espaço, a qualidade construtiva, o conforto, a sustentabilidade energética - nzeb (nearly zero energy buildings), a sustentabilidade económica e de meios na construção, manutenção e conservação.

SRU: Plantas de apartamentos T2a, T3, e T4 com divisões e medidas em m². Incluem sala, quartos, banheiro e cozinha. Escala 1/100.
Estudo de Conceito - Programa de Renda Acessível, concebido pela Sociedade de reabilitação urbana (SRU - coord. Susana Rato e Joana Couto).

No momento em que escrevo, assistimos em Portugal a mais um governo que cai e a mais um período de incerteza que se inicia. Não sabemos se as políticas de habitação do governo cessante vão ter continuidade ou se vão ser revistas em sentido contrário. Infelizmente, o objectivo de construir a habitação que é necessária para fazer cumprir a constituição não parece que esteja mais perto. Nos jornais surgem agora notícias dando conta que as barracas voltaram à cidade de lisboa e a sobre-ocupação é uma realidade cada vez mais corrente. Garagens, escritórios e colégios estão a ser usados ilegalmente como habitação. Os preços das casas entre Janeiro e Fevereiro aumentaram 2,1% e entre Fevereiro de 2024 e 2024 aumentaram 13,6%. O número de sem-abrigo nas nossas cidades aumenta de forma preocupante...

A "crise da habitação e o catálogo de soluções" é um tema pouco óbvio entre nós, mas pode ser que quando sentirmos que não podemos mais adiar a construção dos muitos milhares de habitações que nos faltam sejamos obrigados a integrar tanto esta como muitas outras boas ideias que podemos ir buscar àqueles que estão um pouco mais avançados que nós.


Luis Morgado


Casa moderna com fachada de madeira entre residências tradicionais. Pessoas cuidam do jardim. Folhas de outono e sacos empilhados. Atmosfera tranquila.
Render do catálogo de soluções - HDC-Ontario - 4_plex-01

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