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América - O catálogo de soluções da casa para o habitante do século XIX-XX

Foto do escritor: Luis MorgadoLuis Morgado

Atualizado: 20 de mar.

Bernard Levey com a família em Levittown, NY, US, May 1950, Bernard Hoffman
Bernard Levey com a família em Levittown, NY, US, May 1950, Bernard Hoffman

A moradia unifamiliar na América do Norte tornou-se um símbolo através do qual se expressam os objectivos de vida da família da classe média. O desejo de viver numa casa associada à ideia de lar (“home”), em oposição à possibilidade de habitar num bloco de apartamentos (“housing”), está relacionado com diversos factores: o “Sonho Americano”, o preconceito em relação à vida da cidade e a admiração, talvez inconsciente, pela forma de vida dos primeiros colonos, pressupondo uma aproximação à natureza. Apesar da densificação inevitável dos grandes centros urbanos desde o século XIX, o fenómeno da baixa densidade e o mito da moradia permanecem enraizados na cultura dos Americanos:


For them, the self contained, self-owned house become the dream-of objective” (Kalman, 1994, p. 596).


A casa simbolizaria a independência e um retiro em relação a um mundo instável e competitivo, servindo como contraponto e “força estabilizadora”. No entanto um pouco paradoxalmente associa-se a ela também o valor da mobilidade, da mudança, da construção e da remodelação:


To move, either from one house to another - the perennially favourite activity of small-town America - or from one city to another, suggested the possibility of improving one’s social status” (Clark, 1987).


Este aspecto é importante para entender que um material leve como a madeira e um sistema construtivo fácil de montar, desmontar, ampliar e demolir como o dos reticulados leves (light wood frame) foram sendo desenvolvidos e consolidados como os suportes ideais para acolher estes valores.

A evolução da casa comum dos Americanos no final do século XIX passa pela formulação de uma nova ideia de espaço doméstico a caminho da simplicidade e informalidade contra o modelo da casa Vitoriana precedente que assentava na sofisticação decorativa e nos espaços de representação. O bungalow, o “revivalismo colonial” e o “estilo da pradaria” eram alguns dos aspectos desta renovação. O primeiro princípio que começava a ser aceite de forma generalizada era o da simplicidade e o segundo o da “honestidade”:


Wood was to look like wood, stone like stone” (Clark, 1987).


A reforma da casa era acompanhada de amplo debate não só por parte de Arquitectos, mas também organizações, como a National Home Economics Association e a General Federation of Women’s Clubs, que visavam uma modernização global da família e do espaço doméstico. Esta evolução funcional e estilística não exigia uma alteração ou substituição do tipo estrutural uma vez que o balloon-frame estava perfeitamente adequado às novas propostas, no entanto a pressão do mercado exigia inovações, sempre no sentido da economia. O fenómeno do bungalow na Califórnia, por exemplo, foi um caso de sucesso baseado na evocação de um modo de vida ao ar livre, numa imagem de conforto e segurança, mas também na facilidade de construção e no baixo custo (Clark, 1987).

Prefabbed components and appliances for a Levittown home
Prefabbed components and appliances for a Levittown home

O aparecimento de soluções pré-fabricadas, na tradição dos povos nómadas do passado que desenvolveram abrigos leves, de baixo custo e por vezes transportáveis, relacionou-se com a necessidade de alojar sucessivas vagas de colonos, imigrantes, migrantes do campo para a cidade e famílias em mudança. Os kits de elementos pré-cortados e enviados para os locais de montagem responderam de início às realidades coloniais, na América do Norte, na Austrália, na Índia e em África. A madeira não foi o único material utilizado nas soluções envolvidas nestes processos uma vez que as estruturas metálicas eram também uma opção muito adequada. Porém a leveza e facilidade de transformação da madeira fizeram dela o material de eleição. À racionalização do processo construtivo, vem juntar-se depois a optimização do processo de concepção.

No final do século XIX a Arquitectura nos EUA era não só realizada por Arquitectos (10.000 segundo os censos de 1900), mas também, em grande parte, por não Arquitectos (“near Architects and non-Architects”). Substituindo-se ao sistema tradicional dos serviços do Arquitecto surgiu o sistema de oferta de Arquitectura através das “mail-order” que consistia na realização de um catálogo com os desenhos básicos de um conjunto de soluções que poderiam ser encomendados por correio para se obterem projectos de execução e especificações que permitissem a construção efectiva do modelo escolhido. Tais eram os serviços oferecidos pela companhia Cleaveland and Backus Brothers de Nova York em 1856 no seu catálogo “Villas and Farm Cottages”.

O catálogo “Palliser’s American Cottages” de George e Charles Palliser em 1878 ia um pouco mais longe ao propor aos leitores que escrevessem a pedir adaptações particulares relacionadas com as suas necessidades específicas. Por sua vez estas informações eram transmitidas a Arquitectos subcontratados por Palliser para desenvolver as adaptações sugeridas pelos clientes. Estes depois de efectuarem a revisão final poderiam pagar e dar a ordem para o desenvolvimento dos respectivos desenhos (blueprints) e documentação de execução (specifications).

O objectivo do sistema “mail order” e de outros semelhantes que surgiram mais tarde consistia em evitar o consumo de tempo e de recursos nas tradicionais reuniões com o Arquitecto, com propostas e contrapropostas que elevavam os preços do serviço:


What Palliser provided was a mail order architect” (Gowans, 1987).


Em 1883 Robert Shoppel em Nova York pretendeu ir mais longe quando editou o “How to build, Furnish and decorate”, um livro que oferecia os serviços de um Arquitecto por uma fracção dos custos deste. Os custos do serviço seriam sem dúvida um argumento importante: uma das grandes empresas, prometia nos seus catálogos (“The Radford American Homes” de 1903 e “Radford Bungalows” de 1908) a oferta de um projecto de execução completo e as respectivas especificações com custos entre $8 e $5, enquanto os mesmos serviços cobrados por Arquitectos e concorrentes segundo a prática tradicional seriam entre $75 e $100 (Gowans, 1987).

No século XX, companhias como a Aladdin, a Gordon Van Time, a Montgomery Ward, a Hodgson Company e a Sears, Roebuk and Co., ofereciam vastos catálogos de casas pré-fabricadas. A companhia Aladdin introduziu a Ready-Cut House em 1906 tendo vendido cerca de 65.000 casas. Apresentava um catálogo com 450 modelos variando os tipos desde os simples bungalows até às mais complexas casas revivalistas. George F. Barber era um construtor que se instalou em Knoxville no Illinois e como era difícil entrar na rede comercial local, começou em 1889 por vender edifícios pré-fabricados que eram depois transportados por comboio (Gowans, 1987).

Aladdin “Board of seven” (Central Michigan University, 2015).
Aladdin “Board of seven” (Central Michigan University, 2015).

Várias outras companhias se sucederam tendo sido a empresa Aladdin em 1904 a responsável para a transição para a grande escala. Os modelos dos catálogos, no caso desta empresa, eram criados pelo “Aladdin board of seven”, uma equipe de projecto com um “master designer”, vários “master builders”, e “factory experts”, “but no architects” (Gowans, 1987). Cada projecto era submetido à avaliação do Master designer para verificação do rigor, depois seguia-se a avaliação do Mestre construtor para avaliar a funcionalidade, a resistência e a harmonia estrutural, finalizando o processo com a apreciação dos Mestres industriais quanto à economia de desperdício, normalização dimensional, e economia de custos. O custo deste “board of seven” a trabalhar no apuramento de um modelo só poderia ser viável se o custo do modelo fosse distribuído por centenas de casas vendidas. Assim só uma grande empresa com um grande volume de vendas poderia suportar este tipo de abordagem. O catálogo de 1919 fazia mesmo uma referência ao processo de concepção dos Arquitectos que raramente considerava a economia de desperdício nos cortes de material:


When the architect overlooks something or makes a mistake, you pay the bill; when a contractor overlooks something or makes a mistake, you are the one to stand the costs of his mistake” (Gowans, 1987).

Sears - “The Gordon”, n.º 3356 - Modern Home (Sears Brands, 2015).
Sears - “The Gordon”, n.º 3356 - Modern Home (Sears Brands, 2015).

Para além da Aladdin, companhias como a Sears ou o promotor William Levitt marcaram a História da casa Americana. A companhia Sears, Roebuk and Co. entre 1908 e 1940 vendeu mais de 100.000 casas, celeiros e edifícios de apartamentos. As casas tinham por base o sistema balloon-frame e eram fornecidas em peças numeradas (o número de elementos chegava aos 30.000) e eram acompanhadas por um manual de instruções (Herbers, 2004). O promotor William Levitt começou em 1947 a construir casas destinadas aos soldados regressados da guerra, tendo em 1948 conseguido um ritmo de produção de 150 casas por semana, alcançando assim uma economia de escala que permitia baixar dramaticamente os preços. O seu empreendimento mais famoso é Levittown em Nova York, onde recorreu ao sistema de reticulados leves, com base no clássico elemento de secção 2’’x4’’ (Herbers, 2004).

Estas empresas tiveram um papel fundamental ao longo de todo o século XX, tendo a Sears lançado o último catálogo em 1940. A Aladdin continuou a fabricar casas até 1981 e a Levitt & Sons entrou em bancarrota em 2007.

Catalog nr. 24 Spring 1913 - Balloon frame with wool felt insulation  (Gowans, 1987).
Catalog nr. 24 Spring 1913 - Balloon frame with wool felt insulation (Gowans, 1987).

As empresas que inovaram racionalizando os sistemas construtivos, os processos e o método de encomenda estavam claramente vocacionadas para responder às tendências do mercado, revelando-se na maior parte dos casos conservadoras no estilo e inovadoras na tecnologia. Essas duas características pareciam estar nos antípodas dos procedimentos associados aos projectos realizados pelos Arquitectos, no entanto alguns dos grandes mestres chegaram a tentar adoptar os pressupostos do mercado de massas, nem sempre com êxito, ou quase sempre resultando em fracassos, como refere Colin Davis (2005).

As casas em madeira construídas no século XIX e XX num contexto estranho à tradição erudita da Arquitectura e muito “esquecidas” pelos historiadores da Arquitectura tiveram provavelmente um papel mais importante nas vidas do Homem comum do que as soluções das casas paradigmáticas e sofisticadas dos Arquitectos que surgem nos livros de História da Arquitectura.

Na América a diferença entre a cultura popular da casa de catálogo e a cultura erudita da casa do Arquitecto expressou-se de uma forma muito clara. O contexto cultural pareceu estar preparado para assumir que num quadro de restrição económica a casa de catálogo é um processo muito adequado. Por outro lado, assumiu-se também de forma mais clara que o serviço do Arquitecto não está ao mesmo nível das casas de catálogo, destinando-se na sua essência a soluções personalizadas, mais elaboradas e com outras pretensões artísticas, sendo por esse motivo um serviço mais dispendioso. No limite, para horror dos arquitectos, aceitou-se que a habitação unifamiliar do homem comum, pertencia a um universo neo-vernáculo e não contemplava nem necessitava da intervenção dos Arquitectos.

Bungalow Magazine, v. 3, no. 10, Oct. 1914 periodical
Bungalow Magazine, v. 3, no. 10, Oct. 1914 periodical

Luis Morgado


Note: Este post é baseado num capítulo da tese de doutoramento:

Morgado, Luis (2016). Doctoral thesis in Civil Engineering. Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa.

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