Quando comecei a estudar a construção em madeira, um livro que me marcou foi “The Prefabricated Home” (Reaktion, 2005) de Colin Davies. Para uma geração de arquitectos na qual me incluo, os conceitos de autoria, lugar e solidez faziam parte de um conjunto de princípios inquestionáveis. Os arquitectos nacionais que admirávamos veiculavam esses valores sem ser necessário teorizá-los. Nessa altura, um dos livros que mais gostei de ler foi “Genius Locci” de Christian Norberg Schulz. A ideia segundo a qual a arquitectura e o lugar estão ligados por uma simbiose incontornável parecia-me não apenas muito lógico, como também irrefutável. O que o livro de Colin Davies me ajudou a descobrir foi que algumas dessas certezas podem ser colocadas em causa, não só pela “casa pré-fabricada”, como também pela “casa de madeira”, cujo estudo eu estava a iniciar em 2012.

Colin Davies, foi até recentemente professor de teoria de arquitectura na London Metropolitan University. É um autor a seguir. A sua postura é confirmada pelo interessante livro “Thinking about Architecture” (Laurence King, 2011) onde aponta o dedo ao caminho seguido pela Teoria da Arquitectura a partir dos anos 60, num sentido cada vez mais desligado da prática: “Architectural theory in this new form was not meant for architects and architectural educators, or even for architectural critics in the everyday sense, still less for nonprofessionals with an interest in, and love of, architecture. It was meant for other architectural theorists”.
Em “The Prefabricated Home”, com o pretexto de estudar a “casa pré-fabricada”, apresenta uma tese muito crítica do estado actual da Arquitectura e da postura dos Arquitectos perante a sociedade. A responsabilidade por esta situação é apontada à herança cultural do movimento Moderno e ao sistema instalado - o “establishment” como o designa - da Arquitectura.
Esta obra foi naturalmente escrita tendo a perspectiva Anglo-saxónica como filtro, centrando o contexto na Grã Bretanha e focando especialmente a atenção para o lugar onde toda esta “estória” parece ter início para Colin Davies: os Estados Unidos da América.
O título “The Prefabricated Home” identifica aquele que é o objecto a partir do qual somos forçados a desvendar uma perspectiva geral da desadequação da Arquitectura em relação à sociedade. O objectivo geral do livro - reconhece-o o autor no final - consiste em sensibilizar os Arquitectos para a importância de darem uma maior atenção à menosprezada “habitação pré-fabricada”.

A casa pré-fabricada é uma realidade cujo início Davies situa nos Estados Unidos da América do século XIX, com o advento do sistema “balloon-frame”. O texto documenta a evolução de vários sistemas construtivos, percorrendo depois o século XX e detendo-se naqueles que foram os casos de maior sucesso comercial. A História da casa pré-fabricada é contada num capítulo (o segundo) que com uma certa ironia se designou como “A non-architectural History”. Os seus argumentos, porque são demolidores, procuram sempre ser suportados por uma base factual, apoiando-se muito frequentemente na História e na análise de detalhes, datas, autores, nomes de empresas e números. Muitas vezes o texto revela um agudo cepticismo em relação a algumas “ideias feitas” veiculadas pela História da Arquitectura, que de resto é uma das entidades mais visadas neste livro. Assim, considera-se que apesar de ter sido um sector pujante e de sucesso, o da casa pré-fabricada, tem duas histórias paralelas, uma que é contada aos estudantes de Arquitectura e outra que supostamente “não merece” ser contada porque está fora do “campo da Arquitectura”.
O “campo da Arquitectura” assumido por Colin Davies como referencial na sua abordagem é um conceito, desenvolvido por Garry Stevens em “The Favored Circle”, que inclui toda a cultura arquitectónica veiculada pelos diversos agentes envolvidos no processo (profissionais, universidades e os media especializados). Nesse campo incluem-se valores, ideologias, códigos de conduta, teorias, heróis míticos e edifícios canónicos. Por outro lado reconhece-se à Arquitectura uma maior proximidade com a Arte do que com a construção: afinal, o Arquitecto e o construtor têm culturas e linguagens diferentes. Este divórcio terá as suas consequências: poderá ser responsável por grande parte da Arquitectura não ser concebida por Arquitectos. Davies vai mais longe e diz que 80% dos edifícios estão fora do referido “campo da arquitectura”. O número avançado parece ser uma intuição do autor, que sublinha que a maior parte deste edifícios são casas.

Este será um dos factos mais embaraçosos para os Arquitectos: poucas casas contam como “Arquitectura” e muito poucas pessoas beneficiam da “Arquitectura” na sua experiência espacial mais íntima: a da casa. A casa pré-fabricada, por exemplo, não faz parte da História oficial da Arquitectura. Esta ficou associada, desde o início, a uma cultura industrial, surgindo como uma resposta pragmática a carências de diversa ordem, desde a falta de casas para os pioneiros do Oeste, às necessidades de conforto dos colonos ingleses na Austrália. Estas situações, muitas vezes de emergência, fizeram prevalecer a eficácia, em detrimento da imagem. Em vez de um problema arquitectónico, a casa pré-fabricada foi uma equação com pressupostos técnicos e económicos, na qual os arquitectos não participaram, pelo menos inicialmente. A herança recebida pelo pensamento arquitectónico do século XIX também não facilita a aproximação entre Arquitectura e pré-fabricação: as construções utilitárias não eram consideradas um problema arquitectónico. Mas este quadro altera-se no início do século XX. Os arquitectos progressistas do Modernismo, na Alemanha e em França, voltaram-se para a indústria prometendo uma reconciliação da Arquitectura com a casa pré-fabricada.

“An architectural History” é o primeiro capítulo do livro onde se descrevem as diversas tentativas dos arquitectos Modernos para desenvolverem casas pré-fabricadas. Estas abordagens, por serem da iniciativa de Arquitectos, passam a contar para a “História da Arquitectura oficial” como “estórias” de sucesso, na relação entre indústria e Arquitectura. Neste capítulo, analisam-se as propostas de Le Corbusier para a Maison Citrohan, de Gropius e Konrad Wasmann para a “Packaged house”, de Wright para as casas Usonianas, de Fuller para a Wichita House, entre muitas outras experiências. Colin Davies, tenta demonstrar que todos os projectos desenvolvidos, apesar dos aspectos interessantes que pudessem ter tido, redundaram sempre em fracassos comerciais, ou seja a produção industrial em massa, que seria o seu objectivo final, nunca foi concretizada.
Um argumento possível para os falhanços das sucessivas propostas desenvolvidas por Arquitectos poderia residir no facto de que a casa seria uma entidade não adequada à pré-fabricação; mas a desmentir este argumento estaria à frente dos nossos olhos uma “non-architecture history” das casas pré fabricadas de sucesso, baseadas em modelos tradicionais, populares, de baixo custo e com uma ligação importante à indústria e ao mercado. Segundo Davies a Arquitectura Moderna demonstrou ser impopular, cara e divorciada da produção industrial.
Para além de todas as contradições que Davis encontra, há uma característica incontornável da Arquitectura que parece ser um pouco responsável por toda esta disfuncionalidade: a obsessão pela “imagem”. A hipervalorização da componente visual teria o seu epítome nos Archigram que, citando Martin Pawley, “falharam em todos os mercados excepto na galeria de arte”. Reconhece-se no entanto que esse sucesso de galeria se basta a si próprio para vencer no campo da Arquitectura.

Ao constatar um divórcio evidente "casa-arquitectura", o autor pergunta-se retoricamente porque é que não haveremos de reconhecer que há edifícios, como as casas dos cidadãos comuns, que pura e simplesmente não são Arquitectura? O argumento dos Arquitectos, refere o autor, consiste em defender que o ambiente construído teria mais qualidade se os arquitectos produzissem toda a realidade edificada. Mas então - pergunta - porque é que a maior parte dos edifícios de Arquitectos são frequentemente rejeitados? Novamente o argumento dos Arquitectos: o divórcio é explicado pela falta de sensibilidade das pessoas e seria resolvido com uma educação dos cidadãos para a Arquitectura. Ou seja, ironiza o autor, “O mundo teria que mudar para se adaptar à Arquitectura”.
Em certos trechos do livro, os argumentos parecem cair num radicalismo exagerado. O próprio autor reconhece mesmo que alguns, menos atentos, poderiam ver o livro como um ataque à profissão. Mas o tom de Davis é equilibrado, avançando aqui com um argumento positivo: a relação entre a casa pré-fabricada e a Arquitectura é importante porque os Arquitectos imprimem talento às suas obras. Talento esse que com o “divórcio” actual fica retido num sector muito diminuto da realidade edificada: “80% dos edifícios são privados de um design talentoso”. Não fossem os leitores pensar que Davies se diverte com um ataque à Arquitectura, a sua tese é afinal uma defesa da importância da Arquitectura.
Davies defende que “O campo da Arquitectura deverá crescer e não estreitar-se. Mas primeiro deve reformar-se a si próprio”. O objectivo desta obra seria sugerir alguns dos caminhos através dos quais a Arquitectura se reconciliará com o seu território, com os seus clientes, com os seus parceiros da indústria de construção e com o público em geral. A casa pré-fabricada foi, neste caso, escolhida como veículo para esta discussão em parte porque é um tema de um grande interesse e actualidade. Mas a casa pré-fabricada é importante, principalmente, porque desafia os preconceitos mais cristalizados no mundo da Arquitectura”.
O livro está sistematizado numa sequência lógica: História, Teoria e Prática. Para enfrentar o vasto problema que tem em mãos, e que parece afectar todo o edifício da Arquitectura, o autor analisa primeiro o passado, depois questiona conceitos e princípios e finalmente identifica os processos e práticas relacionados com o futuro da casa pré-fabricada, que será também, subentende-se, o futuro da arquitectura.
Na conclusão mostra-se, de uma forma muito clara, as lições que devem ser retiradas da casa pré-fabricada. Na verdade, essas lições não são mais do que a desconstrução de um conjunto de princípios que têm gerado o consenso entre a maior parte dos agentes que fazem parte do designado “campo da arquitectura”: A autoria, o lugar, a solidez, os modelos, o desenho e a produção industrial.

A AUTORIA - a importância da autoria é questionada inevitavelmente numa casa pré-fabricada. Esta resulta de um trabalho intenso de colaboração, num contexto industrial. Gestores industriais, engenheiros de produção, compradores, contabilistas, pessoal de marketing, vendedores, transportadoras, etc. - são todos potenciais colaboradores. Até o cliente, entendido como um sector de mercado, passa a fazer parte do grupo. A ideia do autor que desenha um edifício singular, para um cliente único, é substituída pela ideia de uma linguagem comum para pessoas comuns. Aqui Davies parece ir longe de mais, ou estará apenas a querer provocar, ao propor que os Arquitectos aprendam a linguagem popular e a usem “gracefully”, rejeitando mesmo as criações pessoais e os apelos da “teoria da Arquitectura”.

LUGAR - A teoria do lugar que se tornou fetiche em algumas escolas de Arquitectura defende que os factores únicos e distintivos de um sítio ditam e moldam as regras da Arquitectura. Davies critica esta ideia fazendo um paralelo entre a casa pré-fabricada e a arquitectura vernacular – “a única que todos apreciam” - argumentando que esta sempre foi uma arquitectura de detalhes standard aplicados a edifícios-tipo normalizados, que eram depois adaptados a qualquer sítio.

SOLIDEZ - A ideia de solidez e permanência contribui para uma certa autoridade moral da arquitectura, associando-se a ela valores de estabilidade e segurança. Esta situação é verificada pelas metáforas construtivas usadas em sociedade (a fundação, a pedra angular, a estrutura, etc). As características das casas pré-fabricadas com a sua leveza inerente e aparência de fragilidade desafiam este princípio, mas ao mesmo tempo parecem ir ao encontro da realidade de uma sociedade em transformação acelerada. A mobilidade hoje parece ser uma condição para a própria sobrevivência.

MODELOS - A ideia do edifício único e o paralelismo com a obra de arte são ideias questionadas pelos processos utilizados na produção da casa pré-fabricada. Nestes últimos é normal o recurso aos “livros de padrões” com soluções tipificados e modelos prontos para serem escolhidos e apropriados pelas pessoas. Se os arquitectos não desprezassem este tipo de abordagem, poderiam concentrar esforços na adaptação das situações tipificadas e validadas pela experiência às condições complexas da realidade e dos contextos.

DESIGN - Os arquitectos assumem normalmente a responsabilidade tanto pelo desenho espacial como pelo desenho construtivo. Mas o desenho construtivo, que é muitas vezes inventado no isolamento do atelier, conduz frequentemente a processos falhados. A tecnologia de um edifício desenvolve-se durante séculos, ou é inventada na fábrica por peritos, com recurso a materiais e a ferramentas da produção. Normalmente será mais seguro adaptar uma tecnologia já existente. A maioria das tecnologias das casas pré-fabricadas consiste em variações do sistema “balloon-frame”, já com uma experiência comprovada de 170 anos.

SISTEMAS - A pré fabricação tem sido associada a sistemas que são construções matemáticas abstractas e que acabam muitas vezes por se bastar a si próprias. Os arquitectos que desenvolveram sistemas pré-fabricados tiveram sempre a tendência para fazer da perfeição do sistema uma obsessão, não admitindo desenvolvimentos e alterações que são próprios dos processos industriais e comerciais. Foi isso que aconteceu, por exemplo, com Konrad Washmann e a sua “Packaged House”.

PRODUÇÃO INDUSTRIAL – Quando identificamos a casa pré-fabricada com os efeitos negativos da massificação e com a repetição de produtos sem identidade e carácter, utilizamos premissas que já não são verdadeiras no contexto da produção industrial actual. A indústria do tempo do “Ford T” deu lugar a conceitos como o de “lean production” e “computer-aided manufacture” que contemplam a personalização dos produtos. Um sistema de sucesso será o intermédio entre o sistema universal e o individualizado tradicional. Uma estratégia razoável consistirá sempre em definir um conjunto de modelos e abrir para cada um deles um campo de opções variáveis.

As lições da casa pré fabricada colocam em questão a imagem que a maior parte dos arquitectos tem da arquitectura e de si próprios. De certa forma coloca também em questão a viabilidade de uma profissão que persiste em voltar-se constantemente para si própria.
Colin Davies termina: “desenhar protótipos para serem apreciados pelos colegas não levará os arquitectos a lado algum. Para fazer verdadeiramente a diferença [os arquitectos] devem aprender as lições da casa pré-fabricada”.